CAPÍTULO XIV – A PULSÃO PARCIAL E SEU CIRCUITO


Ao Arco é dado o nome de vida. (Heráclito – 348)

            Lacan inicia este capítulo fazendo uma crítica aos psicanalistas seus contemporâneos, que a seu ver distorcem a teoria psicanalítica.

            A partir daí vai retomar o seu discurso sobre a pulsão, diz que o aborda: “[…]após ter colocado que a transferência é aquilo que manifesta na experiência a atualização da realidade do inconsciente, no que ela é sexualidade.” (p.165)

            E nos chama atenção ao termo atualização – que em francês – Mise em acté – pôr em ato – aquilo que se atualiza na transferência. 

            “[…]Se estamos certos de que a sexualidade está presente em ação na transferência, é na medida em que certos momentos ela se manifesta a descoberto em forma de amor.” (p.165)

            Afirma que é disso que se trata, e se pergunta:

            “[…]Será que o amor representa o vértice, o momento acabado, o fato indiscutível que nos presentifica a sexualidade no hic et nunc da transferência?” (p.165)

            Para nos reportar ao texto freudiano – A pulsão e suas vicissitudes, porque este é dividido em duas vertentes – ‘[…]primeiramente, a desmontagem da pulsão – em segundo lugar, o exame de das Lieben, o ato de amor.” (p.166) 

            De início aponta para o fato de que o amor não pode ser tomado como representante de todo esforço sexual.

            Para afirmar que isso não funciona de modo algum assim. “[…]em relação à finalidade biológica da sexualidade, isto é, a reprodução, as pulsões, tais como elas se apresentam no processo da realidade psíquica, são pulsões parciais.” (p,166)

             E segue nos dizendo:

            “[…]As pulsões, em sua estrutura, na tensão que elas estabelecem, estão ligadas a um fator econômico. Esse fator econômico depende das condições nas quais se exerce a função do princípio do prazer um nível que retomaremos, quando chegar o momento, como o termo Real-ich.” (p.166)

            Para tanto, diz que: “[…]podemos conceber o Real-ich como o sistema nervoso central, no que ele funciona, não como um sistema de relação, mas como um sistema destinado a garantir uma certa homeostase das tensões internas.” (p.166)

            Asseverando que é em função desse fator econômico, que regulado pelo princípio do prazer, que visa sempre a homeostase, que a sexualidade só entra em jogo em forma de pulsões parciais.

            “[…]E pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente.” (p.167)

            Para a seguir, nos fazer ver que passa a ver a pulsão como essa montagem onde os significantes entram em jogo.

            “[…]O recalcado primordial é um significante, e o que se edifica por cima para constituir o sintoma, podemos considerá-lo como um andaime de significantes. Recalcado e sintoma são homogêneos, e redutíveis a funções de significantes. Sua estrutura, embora se edifique por sucessão como todo edifício, é contudo, no fim, inscritível em termos sincrônicos.” (p.167)

            Fazendo-nos ver que na experiência analítica isto se coloca e diz: “[…]Na outra extremidade, há a interpretação.”. Que é concernida pela estrutura temporal que Lacan define pela metonímia.

            “[…]A interpretação em seu termo, aponta o desejo, ao qual, em outro sentido, ela é idêntica. O desejo é, em suma, a própria interpretação.” (p.167)

            Aponta aqui, que a sexualidade se apresenta nesse intervalo na forma de pulsões parciais.

            “[…]A legalidade do sexo na interpretação do mecanismo inconsciente é sempre retroativa. Ela seria apenas da natureza da interpretação se, a cada instante da história, não pudéssemos estar seguros de que as pulsões parciais intervieram eficazmente em tempo e lugar.” (p.167)

            A experiência analítica nos mostra que: “[…]a sexualidade infantil não é um bloco de gelo errante arrancado do grande banco da sexualidade do adulto, intervindo como sedução sobre um sujeito imaturo…” (p.167)

            Lacan aponta que Freud, desde os – Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) – rompe com o encanto da pretensa inocência infantil, ao colocar que a sexualidade infantil é polimorfa-perversa.  

            “[…]Essa sexualidade, por se impor tão cedo, eu quase diria cedo demais, nos fez passar depressa demais pelo exame do que ela representa em sua essência. É, a saber, que em relação à instância da sexualidade, todos os sujeitos estão em igualdade, desde a criança até o adulto – que eles só tem haver com aquilo que, da sexualidade, passa para as redes da constituição subjetiva, para as redes do significante – que a sexualidade só se realiza pela operação das pulsões, no que elas são pulsões parciais, parciais em relação à finalidade biológica da sexualidade.” (p.167)

            Pontua que a sexualidade se integra a dialética do desejo, através do aparelhamento do corpo, que ocorre a partir do momento que o significante do Outro incide no orgânico, parcializando as pulsões.

            “[…]Se tudo é embrulhado na discussão das pulsões parciais é porque não se vê que a pulsão sem dúvida que representa, mas apenas representa, e parcialmente, a curva da terminação da sexualidade no ser vivo. Como espantar-se que seu último termo seja a morte? Pois que a presença do sexo está ligada à morte.” (p.168)

            Para mostrar a relação da vida com a morte, recorre a um fragmento de Heráclito – recolhido por Diels (1) da época pré-socrática.

            “[…]Bíos, escreve ele, e isto nos emerge como de suas lições de sabedoria, das quais se pode dizer que, antes de qualquer circuito de elaboração científica, elas vão ao ponto, e diretamente – ao arco é dado o nome de vida – Bíos, o acento é na primeira sílaba – e sua obra, é a morte.” (p.168)

            Afirma a seguir que: “[…]O que a pulsão integra de saída em toda a sua existência, é uma dialética do arco, diria mesmo do arco e flecha. Por aí, podemos situar seu lugar na economia psíquica.” (p.168)

            Inicia o item dois deste capítulo, evocando Freud, para nos fazer ver que ele teoriza a pulsão por vias tradicionais e faz uso dos recursos da língua, fundamentando-se em sistemas linguísticos (2).

            Mas, vai nos dizer que isto é apenas um invólucro: “[…]Devemos ver que uma coisa é essa reversão significante, outra coisa é isso com que ela a veste. O que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém em que ela se estrutura.” (p.168)

            Aponta que é notável que Freud designa esses dois polos usando desse algo que é o verbo – Ver e ser visto – atormentar e ser atormentado.

            “[…]É que, desde o começo, Freud nos apresenta como assentado que parte alguma desse percurso pode ser separada de seu vaivém, de sua reversão fundamental, do caráter circular do percurso da pulsão.” (p.168)

            Diz a seguir, que é notável, que para ilustrar a dimensão desse circuito pulsional, Freud escolhesse, o prazer de olhar (Schaulust), e usou para isso o sado-masoquismo.

            “[…]Quando ele falar dessas duas pulsões, e mais especialmente do masoquismo, ele se aterá a bem marcar que não há dois termos nessas pulsões, mas três. É preciso bem distinguir a volta em circuito de uma pulsão do que aparece – mas também por não aparecer, – num terceiro tempo. Isto é, o aparecimento de um novo sujeito (ein neues Subjekt) que é preciso entender assim – não que ali já houvesse um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar seu curso circular. É somente com sua aparição no nível do outro que pode ser realizado o que é da função da pulsão.” (p.169)

            A seguir desenha o circuito pulsional, e diz que é para isso que quer chamar a atenção, “[…]um circuito pela curva dessa flecha que sobe e torna a descer, que atravessa, Drang que ela é na origem, a superfície constituída pelo que lhes defini da última vez como a borda, que é considerada na teoria como a fonte, a Quelle, quer dizer, a zona dita erógena na pulsão. A tensão é sempre um fecho, e não pode ser dissolidarizada de seu retorno sobre a zona erógena.” (p.169)

            Segue apontando que aqui vai se esclarecer o mistério do que é inibido quanto ao destino, dessa forma que pode tomar a pulsão, por atingir sua satisfação sem atingir seu alvo – “[…]no que ele será definido pela função biológica, pela realização do emparelhamento reprodutivo.” (p.169)

            Para se perguntar a seguir:

            “[…]Pois não é esse o alvo da pulsão parcial. Qual é ele?” (p.169)

            Diz que vai suspender sua resposta e aponta e nos fala sobre o alvo e que há dois sentidos que ele pode apresentar. E diferencia-os em: Aim – que quer dizer o caminho pelo qual ele deve passar – The Aim, é o trajeto. E que o alvo tem outra forma – Goal – e que isto diz respeito a ter acertado o tiro – ou seja, ter atingido o alvo.

            “[…]Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação o seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito.” (p.170)

            Faz referência aqui a Freud, dizendo-nos que isto já foi colocado por ele quando alude ao auto-erotismo, e fala que seu modelo ideal – “é o de uma boca que se beija a si mesma.”. Metáfora luminosa, diz Lacan, que deve ser completada por uma questão:

            “[…]Será que, na pulsão, essa boca não é o que se poderia chamar uma boca flechada? – uma boca cosida, em que vemos, na análise, apontar o máximo em certos silêncios, a instância pura da pulsão oral, fechando-se sobre sua satisfação,” (p.170)

            Alertando-nos que o que nos força a distinguir essa satisfação auto erótica da zona erógena, “[…] é esse objeto que confundimos muito frequentemente, com aquilo sobre o quê a pulsão se refecha – este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupavél, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja, instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo. O objeto a minúsculo não é a origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante.” (p.170)

            Chama nossa atenção a seguir, para o fato, de que o circuito pulsional não é revestido de nenhuma característica de espiral ou de desenvolvimento assentada no organismo.

 “[…]Não há nenhuma relação de engendramento de uma das pulsões parciais à seguinte. A passagem da pulsão oral à pulsão anal não se produz por um processo de maturação, mas pela intervenção de algo que não é do campo da pulsão – pela intervenção, o reviramento, da demanda do Outro. (p.171)

            E ao colocar esse reviramento da demanda do Outro, vai falar das pulsões que ele – Lacan, nomeia: a pulsão escópica e a pulsão invocante – evocando aqui que tanto olhar e voz – como objetos da pulsão, não estão ancorados na demanda do Outro, mas tem haver – em função desse reviramento – com o desejo do e pelo Outro. (3)

            “[…]Devemos considerar a pulsão sob a rubrica da Konstante Kraft que a sustenta como uma tensão estacionária. Notemos até as metáforas que Freud nos dá para exprimir essas saídas, Schub (impulso) diz ele, que ele traduz imediatamente pela imagem que ela suporta em seu espírito, a de uma ejeção de lava, emissão material da deflagração energética que aí se produz em diversos tempos sucessivos, que completam, vindo umas sobre as outras, essa forma de trajeto de retorno. Nós (4) não vemos na metáfora freudiana encarnar-se essa estrutura fundamental – algo que sai de uma borda, que reduplica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto que faz retorno, e de que nada mais assegura a consistência (5) senão o objeto, a título de algo que deve ser contornado.” (p.171)

            Lacan nos diz a seguir que essa articulação que faz da manifestação da pulsão, sua articulação em termos de tensão é ao modo de um sujeito acéfalo, para tanto se apoia na topologia para falar desse sujeito.

            “[…]Pude articular para vocês o inconsciente como se situando nas hiâncias que a distribuição dos investimentos significantes instaura no sujeito, e que figuram nos algoritmos em um losango [<>] (6) que ponho no coração de qualquer relação do inconsciente entre a realidade e o sujeito. […]É no que algo no aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira, é em razão da unidade topológica das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel no funcionamento do inconsciente.” (p.172)

            No item três deste capítulo, Lacan vai voltar ao texto freudiano – A pulsão e suas vicissitudes – para falar da pulsão escópica na análise que Freud faz quando fala da Schaulust – prazer de olhar – através do voyeurismo, e nos diz:

            “[…]O objeto aqui é olhar – olhar que é o sujeito, que o atinge, que faz mosca no tiro ao alvo. […]Vocês percebem aí a ambiguidade do que se trata quando falamos da pulsão escópica. O olhar é esse objeto perdido, e repentinamente reencontrado, na conflagração da vergonha pela introdução do outro,” (p.173)

            E a seguir se pergunta o que o sujeito procura ver, e responde: “[…] o que ele procura ver, saibam bem disto é o objeto enquanto ausência.”

            Para a seguir afirmar:

            “[…] O que se olha é aquilo que não se pode ver. Se, graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece, ela só se completa verdadeiramente em sua forma invertida, em sua forma de retorno, que é a verdadeira pulsão ativa. No exibicionismo, o que é visado pelo sujeito é o que se realiza no outro. A visada verdadeira do desejo, é o outro, enquanto que forçado, para além, de sua implicação em cena. Não é apenas a vítima que esta envolvida no exibicionismo, é a vítima enquanto que referida a algum outro que a olha.” (p.173)

            Para encerrar este, vai pontuar que “[…] o caminho da pulsão é a única forma de transgressão que se permite ao sujeito em relação ao princípio do prazer. […] o sujeito se aperceberá de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro – tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer.” (p.174)

NOTAS E REFERÊNCIAS

  1. Hermann Alexander Diels (1848/1922), filólogo, helenista e historiador da filosofia – alemão que coligiu todos os documentos e fragmentos antigos que se referiam à vida e à doutrina dos chamados filósofos pré-socráticos. O resultado desse esforço foi a sua colossal obra – Os fragmentos dos pré-socráticos (Die Fragmente der Vorsokratiker), que se tornou referência básica, para os subsequentes trabalhos de interpretação crítica sobre os pré-socráticos.
  2. O sistema linguístico aqui evocado, é o grego. No grego há três vozes verbais: Voz Ativa – onde o sujeito pratica uma ação; Voz Média (reflexiva) – onde o sujeito pratica e sofre uma ação; Voz Passiva – onde o sujeito sofre a ação.
  3. O objeto oral se refere a demanda ao Outro e está escorado numa função fisiológica; o objeto anal se refere a demanda do Outro, e também está escorado numa função fisiológica; o olhar está referido ao desejo ao Outro e a voz ao desejo do Outro.
  4. Substituímos a expressão – Será que, por – Nós, neste início de frase, como correção a tradução, baseando-nos na edição Francesa (Seuil – 1973) do mesmo seminário.
  5. Substituímos a palavra – consciência, nesta frase por – consistência, como correção a tradução, baseando-nos na edição Francesa (Seuil – 1973) do mesmo seminário. Assinalamos que nesta edição esta frase não é pontuada como pergunta e sim como afirmação.
  6. Operador lógico usado por Lacan para falar da conjunção e disjunção.

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