Fomos convidados, meu marido e eu, para uma confraternização em família. Ocasião na qual encontraríamos alguns familiares que há tempo não víamos. Aproveitaríamos também para prolongar o final de semana dando uma fugidinha da nossa rotina habitual.
Durante a festa de aniversário fomos convidados a almoçar, no dia seguinte, na casa de uma das irmãs do meu esposo, assim como para passar o final de semana com o irmão dele em sua fazenda.
Depois de uma agradável festa, fomos para o hotel. Pela manhã, resolvemos cancelar nossos planos e aceitar os convites para aproveitarmos mais a companhia dos familiares, já que essas oportunidades aparecem raramente.
Na manhã de sexta-feira, após o café da manhã, fomos para casa da irmã que havia nos chamado para almoçar. Seu marido estava trabalhando, mas havia deixado dito que ficássemos à vontade, e que havia cerveja na geladeira.
Em função do frio, recusamos a cerveja, dizendo que um vinho seria melhor. A cunhada liga para o marido e pede ao irmão que fale com ele para vir almoçar. Meu marido, ao telefone com o cunhado, insiste para que ele venha almoçar e tomar um vinho conosco. O cunhado declina do convite, alegando que tem muitos problemas a resolver no escritório, mas que meu marido sirva-se na pequena adega da casa, frisando que escolha o vinho que quiser.
O Maridão abriu a adega e encontrou lá vários vinhos importados do velho mundo, dos quais não conhecia. Encontrou também uma garrafa da vinícola Concha y Toro – Chileno, o qual conhecia a procedência.
Pensando que os vinhos europeus deveriam ser mais “caros”, resolveu escolher o rótulo Concha y Toro. Não sem antes questionar a sobrinha e a irmã, se poderia abri-lo. Se não era um vinho de “coleção”, pois conhecia a vinícola, não conhecia aquele vinho.
Sim, o vinho poderia ser aberto.
Taças de cristal na mão.
Ao ver aquele líquido ser vertido na taça, ficamos maravilhados com a cor de um intenso e puríssimo rubi. Extasiados com a forma que o líquido se acomodava ao recipiente. Inebriados com o odor que a taça deixava exalar. Seduzidos pelo sabor delicado e arrojado, complexo e extraordinário, requintado e harmonioso, excêntrico e original daquele vinho.
O impacto foi tanto, a ponto de ficarmos extremamente frustrados, os quatro que dividiram aquela maravilha, quando descobrirmos ser a única garrafa da pequena adega. Tanto que sequer cogitamos abrir outro rótulo.
Terminado o almoço, e a gostosa e divertida confraternização em família, despedirmo-nos e fomos, para a fazenda do cunhado.
Um expert em vinhos, proprietário de uma preciosa adega.
Chegamos à fazenda. Animados pelo vinho apreciado no almoço e enaltecendo suas qualidades, como algo até então inédito.
O nosso expert em vinhos, como não poderia deixar de ser, imediatamente nos questionou:
– Que vinho afinal vocês tomaram?
O maridão responde:
– Don Melchor 2007.
Abobalhado, o cunhado nos comunica que tomamos um vinho que esta na lista dos 100 melhores do mundo.
Indignado, liga para o dono do vinho, questionando-o como ousava servir-nos um DON MELCHOR 2007, pois nenhum vinho que ele nos oferecesse poderia substituir o espectro do DON MELCHOR 2007. Para completar, sua esposa pediu para falar ao telefone também, proferindo o seguinte veredicto: fulano, você esta ganhando muito bem para ter na adega o DON MELCHOR 2007.
Ao que soubemos depois, o cunhado, dono do vinho, petrificou. Com o que ouviu e pelo fato de que o vinho que estava na sua adega, não era seu. Era do seu filho e estava ali aguardando a melhor hora para ser degustado: Pois, dizem os entendidos, o Don Melchor alcançará seu melhor com um envelhecimento de dez anos. Não esqueçamos que estamos em 2013.
Passamos um alegre e divertido fim de semana com o casal, donos de uma maravilhosa adega, degustando vinhos e assombrados pelo Don Melchor 2007.
Ao chegar em casa descobri, após um telefonema, que o final de semana, do lado de lá, não tinha sido tão divertido, pois também tinha sido assombrado pelo Don Melchor 2007. O mesmo estava sendo buscado em várias lojas virtuais e não estava sendo encontrado.
Tinha realmente tornado-se um espectro.
Resolvi então fazer a minha busca, porque se alguém tinha que repor o vinho, nada mais justo que fossemos nós. O trivial casal tomador de vinho.
Após um tempo, encontrei o distinto vinho no estado da Georgia, EUA, a um preço bem razoável para o digníssimo.
Raciocinei que para trazê-lo ao Brasil, impostos mais transporte, teria um custo três a quatro vezes maior. Resolvi aguardar o inicio da semana e procurá-lo em minha cidade. Conheço uma distribuidora de bebidas que o dono é um amante de vinhos. Sempre que o procurei, soube fazer boas e econômicas indicações, não sem antes mostrar-me algumas preciosidades.
Ao chegar à loja, interpelei-o:
Você tem ai o Top de linha da Concha y Toro?
Alma Fina?
Não – respondi eu – esse não é o Top de linha, ao menos para mim.
Ele sorriu e disse:
Sei. Você quer o Don Melchor.
Qual safra você tem?
Tenho 11 garrafas da safra 2007.
Disparou ele, com um arguto sorriso.
Nem perguntei o preço.
Vou levar uma.
Sai da loja e, do carro mesmo, liguei para o maridão, que ficou satisfeito com a notícia. Liguei também para a cunhada, dona da adega assaltada, com a intenção de desassombrar a todos do lado de lá.
Enfim o Don Melchor havia se incorporado.
Após essa incorporação, fui tomada por um transe mediúnico, que me pôs a reflexionar.
Primeiro sobre o mercado vinícola:
Encontrei de um lado o Bobo da Corte, fazendo traquinagens com seus senhores degustadores de vinhos. E de outro, abastados senhores degustadores de vinhos, envoltos na sua douta ignorância.
Segundo: sobre vinhos, que para mim deveriam ser saborosos, deliciosos, gostosos… Enfim, deveriam proporcionar prazer ao serem degustados, e usados para brindarmos pessoas e suas experiências de vida. Aniversários, namoros, casamentos, nascimentos, formaturas, conquistas, amizades, amores…
Mas, acima de tudo, vinhos deveriam brindar pessoas maravilhosas, intensas, puras – se possível – extasiantes, inebriantes, delicadas, arrojadas, complexas, extraordinárias, requintadas, harmoniosas, excêntricas, originais, autênticas.
Pessoas que deveriam nos deixar maravilhados, extasiados, inebriados, seduzidos.
Porque cada ser humano é único, singular. Quando morrem, não se transformam em espectro, eternizam-se em nossas lembranças.
Lembranças que nos trazem a singularidade de cada um, e que nos permitem descobrir nossa própria singularidade. Nos eternizarmos nas lembranças dos que ficam. Isto é o que se eterniza através dos tempos.