Pensamentos do inconsciente.
O colofão da dúvida.
Subversão do sujeito.
Introdução à Repetição. O Real é o que se retorna sempre ao mesmo lugar.
Lacan inicia esta capítulo apontando-nos que da última vez falou do conceito de inconsciente cuja verdadeira função é justamente estar em relação profunda inicial e inaugural com o do conceito de Unbegriff (incompreensível) – ou de Begriff (conceito), do Un (partícula de negação, de falta) original, isto é o corte.
Corte esse que Lacan liga a função do sujeito em sua relação constituinte ao próprio significante, lembremos aqui que o significante é o que representa o sujeito para outro significante, e que é o corte que possibilita a constituição do sujeito – $.
Pontua que parece novo ele se referir ao sujeito, quando é do inconsciente que se trata. Mostrando que tomou uma direção inteiramente outra da ciência desde Newton do sujeito da experiência cartesiana, porque a causa aqui, “[…]distingue-se então do que há de determinante na lei cientifica. Diferente da lei, a causa intervem quando a determinação simbólica tropeça, quando um significante falta para dar conta do que se passa. […]Inconsciente entre a causa e o que ela afeta há sempre descompasso, falha, mancada.” (1)
Levando Lacan a afirmar que: “[…]Não cessei de acentuar em minhas exposições anteriores a função de algum modo pulsativa do inconsciente, a necessidade de desvanecimento que lhe parece ser de algum modo inerente – tudo que, por um instante, aparece em sua fenda, parecendo ser destinado por uma espécie de preempção, a se cicatrizar, como próprio Freud empregou a metáfora, a escapulir, a desaparecer.”
Segue-nos dizendo que Freud encontrou no campo do sonho a confirmação do que a experiência que teve com as histéricas lhe ensinou e assevera o seguinte em relação ao inconsciente: ‘[…]Afirma-o constituído, essencialmente, não pelo que a consciência pode evocar, estender, discernir, fazer sair do subliminar, mas pelo que lhe é, por essência, recusado.” E Freud vai chamar isso de – Gedanken, pensamentos.
“[…]Há pensamentos nesse campo do mais-além da consciência, e é impossível representar esses pensamentos de outro modo que não dentro da mesma homologia de determinação em que o sujeito do eu penso se acha em relação à articulação do eu duvido.
Diferentemente de Descartes, Freud nos aponta o colofão da dúvida, no texto do sonho, nos mostrando que é através da “constelação dos significantes” que encontra a Gewissheit – certeza: “[…]tal como eles resultam da narrativa, do comentário, da associação, pouco importando a retratação. Tudo vem a fornecer significante, com o que ele conta para estabelecer sua própria, Gewissheit.”
Ao que Lacan vai apontar que, “[…]Freud se dirige ao sujeito para lhes dizer o seguinte, que é novo – Aqui no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll ich werden.” (Lá onde o isso (Real) estava, o sujeito (do inconsciente) deve advir.)
Nossa atenção é chamada aqui para: “[…]não se trata do eu nesse soll ich werden, trata-se daquilo que o ich é na pena de Freud, do começo até o fim – quando se sabe, é claro reconhecer seu lugar – o lugar completo, total, da rede dos significantes, quer dizer, o sujeito, lá onde estava, desde sempre o sonho.”
Sendo que o que nos interessa no sonho é o que a rede de significantes tece e o que aí está enredado.
“[…]Mas o sujeito está aí para ser reencontrado, aí onde estava – eu antecipo – o Real.”.
Para tanto, Lacan irá destacar: “[…]Lá onde estava, o ich – o sujeito, não a psicologia – o sujeito deve advir. E para saber que se está lá, só há um método, que é de discriminar a rede e, uma rede se discrimina como? É voltando, retornando, cruzando seu caminho, que ela se cruza sempre do mesmo modo, e não há nesse capítulo sete da ciência dos sonhos outra confirmação para sua Gewwissheit senão está – Falem de acaso, meus senhores, se isto lhes agrada, eu, em minha experiência, não constato aí nenhum arbitrário, pois isso se entrecruza de tal modo que escapa ao acaso.”
Lacan neste ponto vai nos trazer a lembrança do esquema ótico (2) que Freud envia a Fliess na sua carta 52 (3). Este diagrama nos traz o mecanismo psíquico em camadas permeáveis, mostrando que aí entre essas camadas está o lugar em que se joga a questão do sujeito do inconsciente. Um lugar espacial, anatômico. Referindo-se a este como um imenso desdobramento situado entre percepção e consciência, e é neste intervalo, que separa percepção e consciência que está o lugar do Outro, onde se constitui o sujeito.
Ao que Lacan vai nos fazer ver que:
“[…]Freud deduz de sua experiência a necessidade de separar absolutamente percepção e consciência – para que isso passe para a memória, é preciso primeiro que seja apagado na percepção, e reciprocamente. Ele nos designa agora um tempo em que esses primeiros registros das percepções devem ser constituídos na simultaneidade. O que é isto – se não a sincronia significante? E, por certo, Freud diz isto tanto mais quanto ele não está sabendo que o diz cinquenta anos antes dos linguistas. Mas nós, nós podemos de imediato lhes dar, a esses primeiros registros das percepções, seu verdadeiro nome de significante.”
Continuando a esclarecer que, com Freud na Traumdeutung podemos ir além do deslizamento sincrônico dos significantes e encontrar a constituição da metáfora, introduzida pela diacronia temporal. Sincronia essa formada de uma rede de associações de acaso e de contiguidade, com significantes que se constituíram na simultaneidade em razão de uma estrutura muito definida da diacronia constituinte, nos diz Lacan, asseverando que a diacronia é orientada pela estrutura significante e que isso tem que ter relações com a causalidade psíquica.
Continua nos dizendo que foi em Freud que encontrou os fios de Ariadne para tecer a teoria do significante.
“[…] Sem dúvida, pode ter sido pelas necessidades próprias de uma experiência que pusemos no núcleo da estrutura do inconsciente a hiância causal, mas ter achado sua indicação enigmática, inexplicada, no texto de Freud, é para nós a marca de que progredimos no caminho de sua certeza. Pois o sujeito da certeza está aqui dividido – a certeza é Freud que a tem.”
Lacan volta neste momento a questionar se a psicanálise seria uma ciência, e se podemos distinguir a ciência moderna da ciência em sua aurora, que se discute no Teeteto (4), afirmando que quando a ciência se levanta, sempre traz um mestre. E aí conclui que sem sombra de dúvida Freud é um mestre. A certeza do mestre da psicanálise – Freud, está colocada no sujeito, que está esperando desde Descartes, o sujeito cartesiano (sujeito do consciente) que permite através desse passo inaugural de Descartes o surgimento da ciência moderna.
É esse passo, que leva Freud a chamar esse sujeito de volta para casa.
A que casa se refere Freud?
Ao inconsciente.
O sujeito chamado é aquele do inconsciente, o sujeito evanescente que emerge da combinatória significante, que irá surgir em análise na rememoração.
A rememoração, “[…] É algo que nos vem das necessidades de estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos mais baixos encontros e de toda a turba falante que nos precede, da estrutura do significante, das línguas faladas de modo balbuciante, tropeçante, mas que não podem escapar a constrangimentos cujos ecos, cujo modelo, cujo estilo, são curiosamente de serem encontrados, em nossos dias, nas matemáticas.”
A garantia da certeza de Freud, quanto ao sujeito do inconsciente, lhe vem da noção do entrecruzamento da constituição do campo do inconsciente do que daí retorna – Wiederkehr. Vem do fato de que Freud reconhece a lei do seu desejo, e a descobre por sua auto análise.
Aqui Lacan se coloca a questão sobre a auto análise de Freud.
“[…]E o que é sua auto análise – senão o mapeamento genial da lei do desejo suspensa ao Nome-do-Pai? Freud avança sustentado por certa relação a seu desejo e pelo que é seu ato, isto é, constituição da psicanálise.”
Ao constituir a psicanálise Freud concebe como possível a subversão do sujeito, pois ele identifica o sujeito ao que é originalmente subvertido pelo sistema significante.
Ao passar para o item três deste capítulo, Lacan irá desenvolver a questão do que é a Repetição.
“[…]O que tenho a lhes dizer agora é tão novo – ainda que evidentemente garantido pelo que articulei sobre o significante – que acreditei dever formular para vocês, desde hoje, sem guardar nenhuma das minhas cartas nas mangas, como entendo a função da Repetição.”
Para tanto diz que a Wiederholen – o que retorna, tem relação com a Erinnerung – rememoração. Apontando que a rememoração tem um limite que se chama Real.
“[…]O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans (coisa pensante), não o encontra.”
Para nos dizer que a história da descoberta de Freud da repetição como função, quando este descobre a relação do pensamento com o real, quando se questiona do que se trata essa rememoração, e descobre que se trata de colocar em cena o desejo da histérica, que é o desejo do pai, a ser sustentado em seu estatuto.
Para tanto coloca que:
“[…] a repetição aparece primeiro numa forma que não é clara, que não é espontânea, como uma reprodução, ou uma presentificação, em ato.”.
O ato tem sempre uma parte de estrutura, por dizer respeito a um real. Lembrando-nos aqui que a repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar, que está excluído da cadeia significante, porém em torno do qual a cadeia gira.
Bruce Fink (1997) vai dizer que: “[…]o analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho.” (5) Lacan aqui aponta que está nos levando ao próximo capítulo onde irá tomar a repetição pelo que se mostra na cadeia significante – Autômaton, e o seu encontro com o real – Tiquê.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. Fernanda Costa-Moura – 2006 – O inconsciente entre a causa e o que ela afeta.
2. DIAGRAMA ESQUEMÁTICO DA FORMAÇÃO DO MECANISMO PSIQUÍCO.

x = neurônios onde se originam as percepções
W = Warnehmungen (percepções) são os neurônios em que se originam as percepções, às quais a consciência se liga, mas que, em si mesmas, não retêm nenhum traço do que aconteceu. E isso porque a consciência e a memória são mutuamente exclusivas.
WZ = Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção) é o primeiro registro das percepções; é totalmente inacessível à consciência e se organiza de acordo com associações por simultaneidade.
Ub = Unbewusstsein (inconsciência) é o segundo registro, disposto de acordo com outras relações, talvez causais. Os traços dos UB talvez correspondam a lembranças conceituais; é igualmente inacessível a consciência.
Vb = Vorbewusstsein (pré-consciência) é o terceiro registro, ligado à representação de palavra e corresponde a nosso ego oficial. As catexias provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com certas regras: e essa consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e, provavelmente, está ligada à ativação alucinatória das representações da palavra, de modo que os neurônios da consciência sejam também neurônios perceptivos e desprovidos de memória em si mesmos.
Bew = Bewusstsein (consciência).
M = Significante do objeto primordial, Mãe enquanto Das Ding.
No espaço entre W e WZ existe apenas percepções não há sujeito.
Traço Unário = aquilo que apaga a coisa. É o traço unário que faz Surgir o sujeito ser aquele que conta.
3. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887/1904) – Imago 1986 – p. 208
4. O Teeteto é um diálogo platônico do conhecimento. Nele aparece, talvez pela primeira vez, explicitamente, na filosofia o confronto entre verdade e relativismo.
5. A causa real da repetição – Bruce Fink in Para ler o seminário 11 de Lacan – 1997 – p. 239