A Psicanálise não é um idealismo
O Real como Trauma
Teoria do sonho e do despertar
A consciência e a representação
Deus é inconsciente O objeto a no Fort-da
Neste capítulo, Lacan inicia dizendo que irá dar continuidade a revisão do conceito de Repetição posto por Freud e pela práxis da Psicanálise.
Advertindo que a ´psicanálise pode nos dirigir para um idealismo (1), porém isto deve ser censurado, porque reduz a experiência das vivências humanas – choques de conflitos, da luta, da exploração do homem pelo homem – “as razões de nossa deficiência”. A psicanálise nos conduz a uma ontologia das tendências – ser de pulsões – que já está colocado primitivamente pela condição do sujeito.
Apontando que:
“[…] Nenhuma práxis, mas do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real.”.
Segue para o item um, se questionando: “Esse real (2) onde o encontramos?”
Para nos dizer que é: “[…] de um encontro, de um encontro essencial, que se trata no que a psicanálise descobriu – de um encontro marcado, ao que somos sempre chamados, com um real que escapole.”.
É em Aristóteles que vai buscar, na sua teorização sobre as causas do ser (3), a Tiquê (4), que irá traduzir por “encontro do real”, e o Autômaton (5) a insistência significante, o retorno dos signos, comandado pelo princípio do prazer.
“[…] O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida.”.
Abrindo um parêntese aqui, para dizer que do que ele cuida é da causa: “[…]só existe causa do que manca […]o inconsciente freudiano, é nesse ponto que eu tento fazer vocês visarem por aproximação que ele se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação.” (Lacan – Sem. XI – cap. II – p. 27)
Para tanto Lacan nos faz rememorar do desenvolvimento que Freud faz do caso do Homem dos Lobos (6), para compreendermos por que, ele destaca a função da fantasia.
Ora, a função da fantasia é proteger o sujeito do Real, e Lacan vai nos chamar a atenção para o empenho de Freud com Sergei Pankejeff: “[…] Ele se empenha e de modo quase angustiado, em interrogar qual é o encontro primeiro, que podemos afirmar haver por trás da fantasia.”. Afirmando que esse real é o que “[…] arrasta consigo o sujeito, e quase o força, dirigindo de tal modo a pesquisa que, depois de tudo, podemos hoje nos perguntar se essa febre, essa presença, esse desejo de Freud, não é o que, em seu doente, pôde condicionar o acidente tardio da psicose.”
Voltando a afirmar, como já o fizera em capítulos anteriores, que não podemos nos enganar com a repetição que se apresenta num processo de análise, e que só podemos descobrir do que se trata a partir da função do real na repetição.
Para tanto podemos afirmar que essa natureza não representacional do Real é o que acarreta a repetição, pois exige que o sujeito volte ao lugar do objeto perdido, da satisfação perdida que se apresenta como Vorstellung Repräsentanz em Freud e Represéntant de la Representation em Lacan. Sendo que, a Vorstellung é o impensável, inominável, o indizível, enfim o caráter real da repetição. E a Repräsentanz é a cadeia significante – simbólico, é aquilo que é representado por significantes, não são os próprios significantes, parece ser uma presença ou imagem real que jamais pode ser expressa em palavras nos diz Bruce Funk.
“[…]O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz – a expressão nos diz bastante sua relação com a Tiquê – como por acaso. É no que nós analistas, não nos deixamos jamais tapear, por princípio. No mínimo apontamos sempre que não é preciso nos deixarmos pegar quando o sujeito nos diz que aconteceu alguma coisa que, naquele dia o impediu de realizar sua vontade, isto é, de vir a sessão. Não há que tomar as coisas ao pé da declaração do sujeito – na medida em que aquilo com que precisamente temos que trabalhar é com esse tropeço, esse fisgamento, que reencontramos a todo instante. É este o modo de apreensão por excelência que comanda a nova decifragem que demos das relações do sujeito com o que faz sua condição.”
Essa questão da Repetição leva Lacan a se perguntar qual a função do Real na repetição. Ele vai dizer que o que se repete, é sempre algo que se produz por acaso – Tiquê, enquanto encontro faltoso que se apresenta na forma de traumatismo, assim o Real apresenta algo de inassimilável, na forma do trauma.
O que é o Trauma?
É esse evento inassimilável para o sujeito, geralmente de natureza sexual, e do tipo que pode parecer constituir uma condição determinante da neurose, “[…]é concebido como devendo ser tamponado pela homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido pelo princípio do prazer.”
Lacan aponta que a experiência nos mostra que no seio do processo primário, vemos conservada a insistência do trauma. E por mais que o princípio de realidade evolua, a ordem do real fica prisioneira nas redes do princípio do prazer. É este processo primário, que leva o sujeito ao encontro com o real, o leva a compulsão a repetição.
A parte dois deste capítulo leva Lacan a fazer uma digressão sobre o sonho, para nos mostrar como a compulsão a repetição se apresenta aqui, levando o sujeito a esses encontros faltosos, encontro com o real. É no célebre sonho- Pai não vês que estou queimando – que Freud relata no sétimo capítulo da traumdeutung, que Lacan nos mostra o encontro sempre faltoso.
“[…]Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel do objeto. É no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é nenhum ser consciente.”.
Para fazer-nos ver, que Freud protege o pai, e nos coloca que a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente.
Esclarecendo que o despertar nos faz olhar para esse real pulsional que não tem representação e que temos que procurá-lo nisso que o sonho envelopou, por trás da falta de representação, da qual lá só existe a Vorstellungrepräsentanz – um lugar-tenente da representação.
“[…]O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição – aí está o que precisamos demarcar agora. Aí está, de resto, o que, para nós, explica ao mesmo tempo a ambiguidade da função do despertar e da função do real nesse despertar. O real pode ser apresentado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca realidade, que testemunha que não estamos sonhando. Mas, por outro lado, essa realidade não é pouca, pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar de representação – é o trieb, nos diz Freud.”.
No item três, vai nos dizer que a repetição demando o novo.
“[…]Tudo que na repetição, varia, modula, é apenas alienação de seu sentido. O adulto, se não a criança mais desenvolvida, exige, em suas atividades, no jogo, a novidade. Mas este deslizamento vela aquilo que é o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma.”.
Para tanto a alienação de seu sentido, denota que a realização do significante visa a primazia da significância, aquilo que vela a fantasia.
Ao tomar o exemplo freudiano do Fort-da, Lacan pontua:
“[…]A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa, de um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura – onde se exprime o que, dele – se destaca nessa prova, a automutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva. Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda de seu berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada tem mais a fazer senão o jogo do salto.”.
O que a significância vai por em perspectiva aqui, é essa automutilação, o sujeito cai como objeto – “[…] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura.”. Ao que Lacan vai nos dizer que o homem pensa com seu objeto, para concluir que: “[…]É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação. Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui – só pelo fato de esse jogo se acompanhar de uma das primeiras aparições a surgirem – que o objeto ao qual essa aparição se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito. A este objeto daremos ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a minúsculo.”.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. Idealismo: qualquer teoria filosófica em que o mundo material, objetivo, exterior, só pode ser compreendido plenamente a partir de sua verdade espiritual, mental ou subjetiva.
2. Para Lacan o Real se constitui em termos de diferencial acaso-ordem, um fundo de acaso no qual se constituem ordens emergentes. Ordem e acaso são dois modos de Real, contrários e complementares. O Real enquanto impossível é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita e, por consequência – não cessa de não se escrever – por ter sido instalado no lugar pelo próprio simbólico. Um Real subjacente a toda simbolização, e que forclui o sentido. É a natureza não representacional do Real que acarreta a repetição, exigindo que o sujeito volte ao lugar do objeto perdido, da satisfação perdida.
3. Capítulo II – O inconsciente freudiano e o nosso – Notas e referências número 3.
4. Tiquê: encontro com o Real, que não cessa de não se escrever, com um núcleo impossível de simbolizar e que volta sempre ao mesmo lugar. A repetição que Lacan aponta na Tiquê, envolve algo que por mais que se tente, não se consegue lembrar, porque está excluído da cadeia significante, portanto do registro simbólico. Envolve o impossível de pensar e o impossível de dizer.
5. Autômaton: é o necessário (uma das categorias da lógica modal), o que não cessa de insistir sempre da mesma maneira, por exemplo o sintoma.
6. Homem dos lobos – História de uma neurose infantil – Freud Obras Completas – Vol. XVII.